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SALA 02 - R-existências, agências e conflitos entre os agentes do SPI e os Povos Indígenas na 2º Inspetoria Regional do Pará e Amapá

00:00 / 06:31

Coordenadores: Profª. Drª. Vanderlúcia da Silva Ponte; Prof. Dr. José Rondinelle Lima Coelho; Profª. M.Sc. Marciléia Wanzeler de Souza Vasconcelos

Equipe de pesquisa: Ana Victória Santos da Costa; Benedito Emílio da Silva Ribeiro; José Rondinelle Lima Coelho; Rodrigo Miranda e Silva; Marcelo dos Reis Ferreira; Marciléia Wanzeler de Souza Vasconcelos; Maria Madalena dos Santos do Carmo; Thaynã do Socorro Santiago Galvão dos Reis; Uarley Iran Peixoto da Silva.

O acervo do SPI reúne 48 microfilmes digitalizados de fontes histórico-documentais relacionadas aos indígenas no Estado do Pará e Amapá e as políticas indigenistas do governo brasileiro entre os anos de 1910 e 1967. Por meio de relatórios de inspeção; cartas; ofícios; laudos médicos; exames de corpos de delito, e as mais diversas narrativas disponíveis no acervo digital do SPI doado pela FUNAI para o Laboratório de História e Patrimônio Cultural procura-se com essa exposição fazer um debate acerca dos conflitos e os processos de r-existência decorrentes da política indigenista do Serviço de Proteção Indígena nessa inspetoria e os povos indígenas de diferentes territórios de uma parte da  Amazônia Brasileira. Baseada no ideal positivista e tendo por “herói” inspirador o coronel Cândido Mariano da Silva Rondon, a política indigenista daquele período buscava consolidar um processo de integração susceptível de fortalecer uma identidade nacional. A matriz que sustentava a ação do órgão indigenista apoiava-se na ideia de que o índio era um ser em estado transitório, que exigia do Estado medidas de proteção para impedir que perdessem totalmente sua “indianidade” por meio do contato frequente com os “civilizados”. Com esse intuito, o órgão protetor deveria atuar como elo facilitador do processo de colonização dos indígenas. Uma vez “amadurecidos”, os índígenas seriam colocados em núcleos agrícolas pelo Estado, titular do poder tutelar que, dessa maneira, assumiria, então, um lugar quase fraternal. Imersos em universos cosmológicos distintos, os povos indígenas vinculados a referida inspetoria, criaram dinâmicas próprias de agir e reagir aos ditames governamentais; as insurgências, r-esistências e agências desses sujeitos imprimiram diferentes maneiras de desses povos buscarem, na criação de um conjunto de práticas e de relações socais que eram mobilizadas na condução da vida cotidiana e na convivência entre os diversos mundos que ali colidiam, entre indígenas, não-indígenas e não-humanos, os sentidos para seus corpos, suas experiências e suas práticas.

DOCUMENTOS

Documento 01

Transcrição do Documento

MICROFILME 0104_01069


“A importância do problema sanitário ora agitado por essa chefia, levou V.S. para designar-me a organisar o serviço de assistência sanitária neste posto cuja missão apesar de ser nobre e humanitaria, convence o funiconario (funcionário) de bôa vontade, que é necessário o sacrifício da própria vida para poder fazermos alguma cousa em beneficio de um elevado números de criaturas aqui existentes, as quaes estão tão carentes de tratamento, quanto do alimento cotidiano para suas respectivas subsistências. Contudo, bastante satisfeito com a profissão que abracei, sinto-me bem em enfrentar esta luta que já iniciei e confirmo minha bôa vontade de cooperar com o serviço no ponto de vista citado.


ATUAL ESTADO SANITÁRIO: Concernente a este importante problema, não pode ser pior a situação sanitária neste Posto. Os habitantes aqui, quase que na sua totalidade, quer indígenas quer civilizados, são portadores de esplenomegalia, positivamente gametofelos, verminótivos, atacadados de anemia crônica por consequência da malária e da verminose e finalmente a desnutrição é geral. Segundo informações que colhi de pessôas insuspeitas, não tem se verificado casos de doenças para as quaes pedi diversos medicamento e que são as seguintes: Disenteria amebianam, disenteria bacilar, difteria. Bouba (Triponema de pertenue) assim como não foi me apontado nenhuma caso de febre de febre exanotematica ou tifoide.
No entento a malária e a peneumonia teem produzido um grande numero de vítimas, as quaes não posso aproximar o numero devido não ter podido obter dados para a estimativa, porém, no mês de janeiro por diante enviarei a essa chefia, não só o número de óbitos como a demonstração completa da incidência de moléstias.


SANEAMENTO DO MEIO: Aplicação prática de princípios de higiene e que consiste num conjunto de medidas destinadas a melhorar a situação sanitária do meio, está se tornando tão necessária, quanto o quinino para combater malária, pois, as habitações aqui são anti-higienicas e algumas verdadeiros fócos de micróbios patogênicos especialmente o peneumocos, em virtude ás casa onde falecem doentes vitimados pela citada doença, não serem submetidas ao expurgo necessário e novas vitimas vão sendo ceifados impiedosamente por tão horrendo flagelo. Sanear. Que dizer: limpar. Retirar do sólo os micróbios que produzem a doença. Ensinar o povo aqui por meios de persuasão o meio de evitar doenças, ensinar construir, usar e conservar as sentinas, ensinar que a agua estagnada pode servir de meio favorável a proliferação dos mosquitos transmissores da malária e outras doenças, são cuidados especiais cujos princípios iniciarei com todas as possibilidades que possúo neste ponto de vista assim como, aguardo ancioso, instruções dessa chefia e a remessa de prospectos e outros meios de propagandas simples, mas necessário para tão nobre campanha podemos dizer de sáude pública. Ensinar as mães a tratar (cuidar) e proteger os seus filhos tornando-os homens fortes. É um problema em educação sanitária que deve ser considerado um dos princípios fundamentais do progresso das nossas atividades no terreno do serviço em apreço.


Para a realização dos nossos serviços de saúde publica e assistência ENFERMOSANITARIA em vez de Médico Sanitarista, temos que enfrentar uma grande série de dificuldades em apresento a V.S.. com o esclarecimento abaixo mencionado:


Primeiro – Não podemos propinar medicamento aos enfermos sem impreterivelmente passarmos pela decepção de verificarmos suscessivas recaídas, dado a falta de alimentação, que obriga o enfermo tomar chibé e não há outro geito, porque ou escapa tomando chibé ou morrer a mingau, tal é a falta de alimento, especialmente porque a incidência de malária e peneumonia foi tão violenta ao ponto de não termos pescador nem caçador durante a fase de convalescença dos referidos profissionais. Com tudo, independente das explicações acima, aqui, não temos nem farinha de trigo para fazer um mingau, e por consequência quando torna-se necessário aplicar diéta em algum enfermo e não se pode dar-lhe, alimento, este prefere um chibé e escondido toma assaí até encher o estomago, e ainda diz que é preferível morrer de barriga cheia.


Pelos motivos expostos, deduzidamente V.S., fica mais ou menos ciente da meneira, decepcionante com que temos de atender doentes sem ter ao menos autoridade para proibi-lo comer isso ou aquilo. V.S. julgará melhor este caso.


SANEAMENTO ESCOLAR: Sendo este o campo que depois dólar podemos iniciar na creança os hábitos sadios de higiene, como lavar as mãos sempre que tiver de pegar em qualquer alimento, quando sair da privada, escovar os dentes, pentear os cabelos, vacinação e revacinação contra doenças infectos contagiosas, aplicação de vermífugos, tratamento á base de quinino, estrato hepático, ectrato esplênico e outros recursos para nutri-los, são fatores indispensáveis para melhor êxito na nossa iniciática no terreno sanitário para cujo fim, peço essa Chefia oficiar as professoras deste Posto e do Felipe Camarão, solicitando estrita colaboração com o responsável pelo serviço sanitário, pois, será mais um impulso necessário para o êxito que aspiramos obter.


O Snr. Inspetor Miranda, desdobra-se para levar as cousas para o terreno do progresso, mas, a falta de cooperação é tão grande que parece incrível, uma exposição criteriosa neste ponto de vista, porém, o Snr. Inspetor Miranda, certamente explicará a V. S., da série de dificuldades e embaraços que temos encontrado aquie a finalidade é degostar o funcionário para que a obra iniciada por V.S., não ter o andamento necessário. Até eu, já bastante desgostoso com um estado de cousas não fosse a serenidade com que age o referido Snr. Inspetor Miranda, já teria desistido e dita responsabilidade recai sobre pêssoas desgostosas com as últimas atitudes tomadas pelo Serviço e que nos querem prejudicar, como cousas que nos temos algo pelas consequencias de desinteligencias de terceiros.


AMBIENTE: O ambiente aqui é carregadíssimo, só o Snr. Inspetor Miranda, poderá explicar melhor este importante fator, e eu posso adiantar que só tenho aguentado o peso do mesmo, porque “repito”, a serenidade com o Snr. Inspetor Miranda, age, ajudame a ir compreendendo melhor as cousas especialmente com referencia a mudança de determinados elementos que são verdadeiros inimigos do Serviço, fato verificado na maneira sordida com que se gloriam pelo menor fracasso verificado nas experiencias aqui efetuadas.


ENFERMARIA: Ainda não temos nem mesmo improvisado, tudo o que o Snr. Inspetor Miranda, procura efetuar com o menor bom senso, mas, dado a falta de operarios e menos de trabalhores braçal. Penso tao cedo não termos um ambiente proprio para iniciarmos o serviço com a devida higiene e disciplina indispensaveis para mais tarde não termos possiveis embaraços. Mormente, que na residencia do enfermo, os dengos e as facilidades contribuem para que o serviço, gaste uma fortuna com medicamentos, e os resultados serem infimos em relação ao verdadeiro caminho que temos necessidade de seguir.
Meu convivio com o povo é satisfatorio, consegui a simpatia necessária para o inicio da campanha, não quero dizer com isso, de uma hora pra outra se dê um contraste. Mas, este fato fica por conta do imprevisto. No entanto tudo farei para manter-me com a moral que minha profissão exige. O Snr, Inspetor Miranda explicará melhor este caso.

VIAGEM AO POSTO FELIPE CAMARÃO: Pelo fato do estado sanitario ter alterado naquele Posto de Serviço, acompanhei o Snr. Inspetor Miranda até ao mesmo, onde de fato estava sendo exigida nossa presença e a respectiva assistencia de medicamentos. Verificamos ali diversos casos de pneumonia, malária, e outros casos de menos importância, como ulceras, supurações do ouvido, cefaleia etc. Tudo que esteve em nosso alcance fizemos, inclusive experimentamos aplicar injeções em alguns indígenas não havendo oposição da parte dos mesmos. A titulo de experiencia procurei injetar injeção em uma índia Urubú, já em estado adiantado de pneumonia, afim de verificar a reação contra mim, mas, graças ao espirito de conformação com que os parentes da referida india receberam o golpe, apenas tive somente que pagar a morte.


ESTADO SANITARIO EM FELIPE CAMARÃO: Este problema é identico ao de Pedro Dantas, e o meio não tem nada de recomendavel para ser levado com bom êxito, uma camapanha como esta que estamos iniciando, devido haver algo duvidoso, basta um pequenino fuchico para qualquer funcionario ser morto de flecha, pois, a combinada é fundada com os caracteristicos da Gestapo de Hitler, e estribado dentro da verdade darei minha cooperação para esclarecimento dos fatos, e esses certamente serão levados ao conhecimento de V.S., pelo Snr, Inspetor Miranda. Para peor impressão, os medicamentos ali são vendidos á qualquer pessoa que necessite dos mesmo.


ORGANISAÇÃO DE MODELOS: Conforme ordem dessa Chefia, tracei e preenchi os modelos de controle de medicamentos, controle de doenças, fichas de doentes, fichas de entregas de medicamentos e livro (ficha) de matricula de doentes. Sendo que os referidos modelos ficam ao inteiro dispor dessa Chefia para fins de qualquer uma remodelação.


MEDICAMENTOS: Não fora uns comprimidos de sulfatiasol e umas injeções da broncopneumonico, nada teriamos feito em beneficio das vitimas de pneumonia, assim como, umas ampolas de paladormon que, embora algumas já poluidas salvaram as vidas de inúmeras vitimas de malária e digo foram os únicos medicamentos de precisão que encontrei aqui, conforme ficha de controle de medicamentos. SUGESTÕES: Tive má impressão do ambiente aqui, e ainda não é nada satisfatório presentemente, porém, estou colocando adiantado de tudo o espirito de sacrificio.

Pòsto Pedro Dantas, 15 de janeiro de 1946

Oscar de Souza
(Enfermeiro)

Sinopse do Documento

00:00 / 04:20

Relatório Do Enfermeiro Oscar Federico de Souza referente a criação de Assistências Sanitárias nos Postos Felipe Camarão e Pedro Dantas, nas Zonas do Gurupi (SPI. Ministério da Agricultura. Microfilme 104. Fotograma 01069).


Datação: 15 de janeiro de 1946.
Origem: Acervo microfilmado do Museu do Índio/Fundação Nacional do Índio, Ministério da Justiça Fundo: 2ª Inspetoria Regional.

 

Em um conjunto documental, datado do ano de 1946, o enfermeiro Oscar Federico de Souza produz um esboço do seu deslocamento e das inspeções sanitárias realizadas nos postos indígenas do Gurupi, no nordeste do Estado do Pará. Naquela ocasião, a serviço do chefe da 2° Inspetoria Regional, do Serviço de Proteção aos Índios, o enfermeiro foi incumbido da função de organizar um serviço de assistência sanitária nos postos indígenas que compreendia diversos grupos étnicos; entres eles os Tembé, Timbira e “Urubu-Kaapor”. Nesse relatório, entre várias questões, é delineado um cenário de surto epidêmico entres os habitantes dos postos. Segundo sua avaliação, tanto indígenas quanto trabalhadores não-indígenas, quase em sua totalidade, eram afetados por diversas tipos de moléstias. Em especial, o enfermeiro faz destaque àqueles que eram atacados de anemia crônica, por consequência da malária e de verminose. Da mesma forma que a malária e a pneumonia tinha produzido muitas vítimas e, no qual, contribuam fortemente para um quadro de desnutrição geral. A partir dessas observações, é proposto pelo enfermeiro como método de expurgo desses males a aplicação prática de princípios de higiene e que, de acordo com ele, “consiste num conjunto de medidas destinadas a melhorar a situação sanitária do meio”. Em suas palavras, “sanear. quer dizer: limpar. retirar do sólo os micróbios que produzem a doença”, para o empreendimento de uma campanha de saúde pública na região. Além desses grandes anseios, são apresentadas também as séries de dificuldades encontradas para a realização desses serviços. A exemplo, o enfermeiro relata que não é possível distribuir medicamentos aos enfermos sem, impreterivelmente, passar pela decepção de verificar sucessivas recaídas. Nesse caso, tanto pela falta de alimentação, que  obrigava o enfermo tomar chibé, “porque ou escapa tomando chibé ou morria a mingau”, tanto era a falta de alimento. Considerando que a incidência de malária e pneumonia foi tão violenta ao ponto de não restar pescador e nem caçador durante a fase de convalescença da doenças. Mas também em decorrência dos processos de negação e recusa dos indígenas. Segundo Oscar, “na maneira decepcionante com que temos de atender doentes sem ter ao menos autoridade para proibi-lo comer isso ou aquilo”. Revelando, mesmo na fala desse agente de estado, as mais diversas facetas que envolvem a implementação de serviços formais de atenção à saúde para os povos indígenas, como também a evidencia de que esses povos historicamente vem produzindo e reproduzindo seus próprios saberes em relação à saúde, às doenças e, assim, r-existindo (Porto Gonçalves, 2008) no trato aos surtos epidêmicos, ao etnocídio.

Autoria da sinopse do documento:

Vanderlúcia da Silva Ponte - Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Pará (UFPA)/ Universidade Paris 13
Ana Victória Santos da Costa - Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Diversidade Sociocultural,
Museu Paraense Emílio Goeldi (PPGDS/MPEG)
Thaynã do Socorro Santiago Galvão dos Reis - Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Linguagens
e Saberes da Amazônia (PPLSA/UFPA)

Documento 02

Sinopse do Documento

00:00 / 05:12

Relatório de inspeção do Posto Pedro Dantas nas aldeias do Gurupi [documento audiovisual] (SPI. Ministério da Agricultura. BR MI SPI DA IR2 PD 1-27)


Origem: Acervo microfilmado do Serviço Proteção aos Índios [Fundo: 2ª Inspetoria Regional] – Museu do
Índio/Fundação Nacional do Índio, Ministério da Justiça.


A FESTA DA MENINA-MOÇA TENETEHAR-TEMBÉ: OLHARES CRUZADOS


A Festa da Menina-Moça, ou Festa do Moqueado, está ligada a um dos momentos mais importantes na vida social e cultural dos Tenetehar-Tembé: quando as meninas têm sua primeira menarca e os meninos começam a mudar a voz, demarcando assim a passagem da infância para a vida adulta. Na língua tenetehar, é denominada de Wira'u-haw. Essa festa celebra o amadurecimento e a transformação dos indivíduos, que se tornam “gente verdadeira” (PONTE, 2014). Nos últimos anos, tornou-se um importante instrumento político para os Tembé, como forma de afirmação de sua cultura, indianidade e território perante a sociedade envolvente.


Longe de ser um fenômeno atual, a Festa da Menina-Moça suscita pensar sobre vários aspectos da vida Tembé, ontem e hoje. Optamos por trazer algumas reflexões e paralelos a partir de dois conjuntos de fotografias: as primeiras, produzidas em 1940 por serventuários do Posto Indígena Pedro Dantas, na aldeia Tembé Igarapé da Pedra, na região do rio Gurupi, e que compõem atualmente o acervo histórico- documental do Serviço de Proteção aos Índios; as segundas, registradas em 2018 por Benedito Emílio Ribeiro quando de sua participação na referida festa enquanto membro do GEIPAM.


As fotografias, como os documentos, carregam intencionalidades. E também despertam sentimentos. Segundo Ivan Gaskell (1992, p. 265): “A fotografia é o meio visual em que os acontecimentos passados são com frequência tornados mais acessíveis pela resposta emocional do momento”. Assim, a mesma precisa ser problematizada e interpretada, buscando-se as raízes das representações produzidas e veiculadas. No primeiro conjunto de imagens, vemos que as mulheres estão cobertas, vestidas, a exceção de uma que está com os seios à mostra em um dado momento. Elas usam na cabeça um capacete com penas de pássaros, e algumas têm pinturas nos braços. Os homens estão vestidos com calções, usam cocares na cabeça, carregam maracás. Eles parecem estar usando o cigarro de tawari. Esses registros tinham como função preservar, musealizar esta prática em “vias de desaparecimento”, uma vez que a política do SPI buscava transformar os Tembé em “civilizados” reduzindo sua “indianidade” (Lima, 1995). O olhar de exotismo sobre os indígenas ligava-se também ao dever civilizatório, e científico, do Estado junto a estes povos.


Já no segundo conjunto, com fotografias registradas durante a festa da Menina-Moça em 2018, vemos que as meninas estão todas pintadas de jenipapo, usam apenas uma saia longa branca e estão com o busto em evidência. Os rapazes estão presentes. A aldeia toda está em festa, celebrando, dançando, cantando e chamando os espíritos (Karuwaras) para “brincar”. Diferente do contexto anterior, as moças são mais jovens e não estão submetidas ao pudor de seus corpos introduzido pelos não indígenas. E os outros Tembé, parecem exercer maior autonomia sobre seus saberes, sem os olhares impositivos de um órgão tutelar.


A menina da imagem F. 02 tem em seus braços uma guariba moqueada, a mesma que o rapaz da imagem F. 09 carrega consigo, no registro de 2018. A guariba, segundo Ponte (2014), é animal xamânico na festa, sendo utilizada para comprovar a virgindade das moças e rapazes. Por meio das imagens, podemos observar a resiliência, e r-existência, dos Tenetehar-Tembé em face dos processos históricos que buscavam apagar, e dirimir, esta importante prática sociocultural.

Autoria do texto

Benedito Emílio da Silva Ribeiro: Historiador. Mestrando em Diversidade Sociocultural pelo Programa de Pós-graduação em Diversidade Sociocultural do Museu Paraense Emílio Goeldi. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão (GEIPAM) e do Grupo de Pesquisa Diversidade e Interculturalidade na Amazônia (DINA).

Marciléia Wanzeler de Souza Vasconcelos: Docente da Faculdade de História da Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança. Doutoranda em História pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão (GEIPAM).

Rodrigo Miranda e Silva: Aluno de graduação do curso de História da Universidade Federal do Pará, Campus de Bragança. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará-Maranhão (GEIPAM).


Referências

GASKELL, Ivan. História das imagens. In: BURKE, Peter (Org.). A Escrita da História: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p. 237-271.


LIMA, A. C. de Souza. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995
PONTE, Vanderlúcia da Silva. Os Tenetehar-Tembé do Guamá e do Gurupi, povo verdadeiro!: “saúde diferenciada”, território e indianidade na ação pública local. 2014. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Universidade Federal do Pará, Belém, 2014

Documento 03

Transcrição do Documento

Relatório do encarregado do P.I Felipe Camarão, 1940, IR 2

Ao terminar este relatório, cumpre-me mais uma vez, levar ao vosso conhecimento, com a necessária clareza, as graves ocorrências verificadas neste Posto e suas circunvizinhanças, em novembro próximo passado, e assim confirmando meu oficio, a essa inspetoria, de 22 do mesmo mês de novembro, sou forçado a declarar-vos, que a permanência da missão protestante inglesa, já mencionada, no meu referido ofício de 23, torna-se um estorvo, um entrave à boa marcha do serviço, não só de proteção como também de pacificação dos indios, isso devido a pouca distancia em que esta instalada desse posto e mesmo pela maneira, falsa descortês e hipócrita, manifestada nesses últimos períodos pelos chefes da mesma missão, os ingleses Jóca e Leonardo.


Pelo meu referido ofício de 22 de novembro passado, essa inspetoria ficou bem orientada da maneira de proceder dos chefes da missão, Jóca e Leonardo com relação ao índio Tembé, Humberto, de 14 anos de idade, assassinado friamente na sede da missão, na ausência de Jóca, que se achava em Belém do Pará, por João Pereira da Silva, que diziam ser filiado na mesma missão, o qual depois de ter tentado se defender, acusando Leonardo como envenenador do menor índio já referido, foi preso pelo mesmo Leonardo, amarrado e, nesse mísero estado, sem dó ou compaixão do desgraçado, conduzido em canoa até a cidade de Viseu, onde chegou com os braço (devido o amarrilho) completamente podres e gangrenados, vindo a falecer poucos dias depois. Convém notar que todo o martírio do infeliz criminoso foi assistido por Leonardo e seu companheiro de missão, Abimael, que o acompanharam desde o momento em que o mandaram amarrar, até sua chegada em Viseu.


Faço estas declarações, não para diminuir a culpa do infeliz criminoso João Pereira da Silva, que se tornou merecedor de severo castigo, mas para mostrar, com seu trucidamento, de quanto são capazes os membros da chamada missão protestante, no rio Gurupi. Se não fora teimosia, má fé dos ingleses Jóca e Leonardo que respondeu em falta de respeito para com o regulamento do serviço indígena, o índio Humberto não permaneceria em Boa Vista, sede da missão protestante, onde iludido por Jóca e Leonardo, aguardava a realização de promessas visionárias, não atendendo seu chamado de voltar ao posto, por ser o mesmo Humberto aluno da escola Gonçalves Dias, que aqui funciona, o que fiz sentir isso as chefes da missão e, não sendo atendida minha reclamação, aguardava o regresso do auxiliar deste posto, Migue Silva Filho, que se achava em matéria de serviço para que ainda fosse preciso empregar energia, fazermos o referido índio retornar ao posto e frequentar a escola, e foi neste interim que se deu a tragédia, da qual foi
vítima o mesmo.

Sinopse do Documento

00:00 / 03:22

Relatório do encarregado do P.I Felipe Camarão, 1940, IR 2

O presente documento é parte integrante do relatório anual de ocorrências do Posto Indígena Felipe Camarão, instalado na foz do igarapé Jararaca, afluente do rio Gurupi, que atendia majoritariamente indígenas das etnias Tembé, Timbira e Ka’apor. O encarregado do Posto no momento da produção do relatório, Miguel Pereira da Silva, escreve ao Inspetor regional da 2° IR sobre as ocorrências, dados de produção e grupos atraídos relativos aos meses de Janeiro a Dezembro de 1939. Um assunto que ocupa bastante espaço no documento é referente aos problemas envolvendo uma missão religiosa que estaria no entorno do Posto, na localidade de Boa Vista, e que é acusada pelo encarregado do P.I de estar envolvida no assassinato de um jovem Tembé, chamado Humberto. Nas palavras do encarregado do posto, os sujeitos responsáveis por tal ato estariam ligados à uma Missão Protestante Inglesa. Segundo consta, Humberto foi assassinado friamente por João Pereira da Silva, na sede da missão. Nas palavras do relator, era quase que impossível que filiados a esta missão ainda continuassem a viver tão próximos ao posto indígena, tendo em vista que os participantes desta não eram pessoas que aspirassem algum tipo de confiança. Segundo o chefe do P.I, Jóca e Leornado, integrantes da missão, foram os responsáveis pelo crime de assassinato do jovem Tembé de 14 anos e tal caso, segundo relatado, reforça a necessidade de medidas enérgicas contra a atuação da missão no local.


As estratégias utilizadas para a atração e pacificação dos indígenas da região do Gurupi empregadas pelo Serviço oficial do Estado novista (1937-1945) eram também empregadas por instituições externas, como as Missões Protestantes inglesas. Cabia aos inspetores dos Postos Indígenas do Gurupi (Pedro Dantas, Felipe Camarão e Maracassumé) incutir aos indígenas da região (Tembé, Timbira e Urubu-Kaapor) elementos centrais do governo Vargas, como o nacionalismo e o culto ao trabalho. Porém, a atuação de missionários nas proximidades dos postos gerava uma conflituosa relação em torno dos “nativos”. Segundo Saraiva (2000), durante o período da 2ª Guerra Mundial, ressaltava-se o combate às influências externas no Brasil, e tal como o documento menciona, “a permanência da Missão Protestante [...] tornava-se um estorvo, um entrave à boa marcha do Serviço”. Nota-se que da parte dos missionários, conforme o documento oficial, utilizava-se, além da violência, quando necessário, de “promessas visionárias” como estratégia de contato, forma de negociação e tradução mútua entre as partes (POMPA, 2001).

Autoria da sinopse do documento:
Joyce Ramos da Silva – Graduanda do Curso de História – UFPA, campus de Bragança
Marcelo dos Reis Ferreira – Graduando do Curso de História – UFPA, campus de Capanema
Uarley Iran Peixoto da Silva – Graduando do Curso de História – UFPA, campus de Bragança

Documento 04

Sinopse do Documento

RELATÓRIO DE SERVIÇOS E OCORRÊNCIAS DO AGENTE DE POSTO MIGUEL PEREIRA DA SILVA DO PI FELIPE
CAMARÃO. (SPI. Ministério da Agricultura.)

 

Datação: 31 de Dezembro de 1944.
Origem: Acervo microfilmado da Fundação Nacional do Índio.

O documento analisado foi produzido a época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e traz uma diversidade de informações sobre o Posto Indígena Felipe Camarão, o qual dá detalhes sobre produção, atividade de inspeção dos serviços do referido posto, além da visita de índios advindos de outras aldeias, como as que ficam situadas na região do alto rio Guamá. Assim, destaco que o Posto Indígena Felipe Camarão abrigava no período de produção do referido Ofício-relatório índios Tembé, Timbira e Kaapor. Desta maneira, atentei para a ênfase dada neste relatório aos dispositivos adotados pelo SPI para lidar com os índios, o qual buscou meios de manter os indígenas em situação de submissão, isso fica claro nas entre linhas do discurso adotado pelo agente Miguel Pereira da Silva, em que o mesmo mostra preocupação em apresentar um cenário em que os índios estão sendo incentivados a produção e, mais que isso, estão aderindo com sucesso à proposta do SPI no Posto Indígena Felipe Camarão, algo constatado nos dados de produção e descrição da atuação dos nativos no preparo de roças e farinha. Diante disso, o processo de introdução de índios Tembé e Kaapor (os quais recebem destaque no ofício-relatório) ao contexto de produção nacional estaria obtendo êxito, que era, naquele momento, um dos principais objetivos do SPI. Diante disso, o Serviço de Proteção ao Índio agiu tecendo relações de dominação, se posicionando num plano “superior” ao indígena, que por sua vez, deveria ser “desprovido de vontade própria e iniciativa de reação” (SOUSA LIMA, 1995). Portanto, o Ofício- nº 28, encaminhado ao diretor do SPI, senhor Jose Maria de Paulo, apresenta os índios que ali residem, ou chegam, como tutelados, os quais tinham suas escolhas, iniciativas, movimentos, percepções, estabelecimento de lógicas e julgamento desaprovados por seu cuidador, já que eram moldados a partir de uma noção social desconexa da realidade considerada correta pelo modelo social padrão vigente na sociedade “civilizada”. No entanto, ressalto que esse tipo planejamento apesar de entendido a partir da desautorização de reação do grupo pelo SPI, também pode ser visto como ferramenta de resistência dos indígenas, ou seja, em determinados momentos os índios se sujeitaram a essa posição pela sobrevivência do grupo.

Autoria da sinopse do documento:
José Rondinelli Lima Coelho. Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas
(UFAM).

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